A Crítica e eu (ou “ninguém te tira o conhecimento; você o esquece sozinho”)

Prolongamento da obra, carta aberta ao autor, garrafa jogada ao mar, a arte de amar.  A crítica pode ser tudo isso — ou teria sido tudo isso? —, mas, num momento em que é pouco lida — e que a crítica vista (literalmente) é baseada em sinopse, mercado e adjetivação —, a crítica que interessa a mim, cuja existência depende do literário, tem caráter puramente egoísta: ela é o registro do exercício do sensível, do raciocínio e, sobretudo, da memória. Escrevo para não esquecer.

Certa vez, li um picho num muro: “ninguém te tira o conhecimento; você o esquece sozinho”. Ora, ora, os muros, às vezes, nos provocam tanto quanto os filmes ou livros! Esse me revelou uma verdade, quase como uma bordoada, como se, na leitura, eu tivesse dado de cara com as letras estilizadas na parede cor de concreto: a memória é uma espécie de mumificação atmosférica que tenta dar conta dessa matéria volátil, formadora das nossas cenas diárias, incluindo aquelas em que estamos diante de outras cenas. Lembro, por exemplo, que li Nas Montanhas da loucura numa poltrona do Expresso de Prata, mas hoje restam-me mais lampejos climáticos (misturados ao cheiro de estofado de ônibus) do que imagens assentadas do livro de H. P. Lovecraft. 

Anteontem, me perguntaram: viu Ruído branco? O nome não me soou estranho, mas não tinha, dentro de mim, qualquer indício para além dessa impressão do “ouvi falar”. Aí disseram-me que era com Adam Driver, e o filme, visto no começo deste ano, voltou-me timidamente. Precisei de alguns minutos ainda para recuperar a presença de Greta Gerwig, um pedaço de cena num abrigo apocalíptico e um crime num quarto “sujismundo” no último ato. Só. Até agora não me veio o renomado autor norte-americano no qual Noah Baumbach baseou seu filme. Claro, eu poderia dar um Google, mas isso atrapalharia o ditado deste texto, que nasce com surpreendente facilidade.

Ah, sim, vez ou outra, eu ditos os textos, porque tenho meu próprio bloqueio da página em branco; no meu caso, implico com o formato das letras, o que faz com que meu relacionamento com determinada fonte do Word se esgote rapidamente. Sim, textos têm partos difíceis mesmo para quem acha que tem intimidade com as palavras, para quem gosta (ou acha que gosta) de escrever. Comprei, este ano, um livrinho bonito de Clarice Lispector, com aforismas que ajudam a contornar essa insegurança insistente acerca da escrita (mas não me recordo, de pronto, de qualquer passagem). Gosto quando Stephen King fala que a primeira versão é para pôr o texto de pé e que só depois a gente se preocupa em escrever bem, em lapidar as palavras (depois do ditado, tenho que, pelo menos, rever as vírgulas, uma vez que a transcrição do Word não está apta a transformar pausas em vírgulas). Dia atrás, alguém da GloboNews soltou uma dessas frases de impacto sobre os impasses da ONU na guerra: estão preocupados com as vírgulas ao invés das vidas! A mensagem é clara no contexto em que é dita, mas não pude deixar de lembrar das professoras de português do primário — vírgula é para respirar! Respiramos para viver; vivemos também para lembrar (Ou seja, tudo é uma questão de vírgula).

Talvez a lembrança seja a tarefa mais árdua dos nossos tempos: na ONU, por exemplo, ninguém parece se lembrar o porquê da criação do órgão. Na TV, a notícia se rende ao fluxo do celular, enquanto a dramaturgia tem que ser espetáculo superficialmente bem-acabado, com drone, braço-robótico ou filtro de Instagram (ao ver o pastiche que Terra e Paixão fez de E o vento levou… fiquei me perguntando: será “clarendon”, “reys”, “juno”, “nashville”?). Ou seja, nada é inesquecível além das coisas esquecíveis. Ah, claro, os filmes seguem por aí, em um entra-e-sai de streamings que me deixam com saudade do cantinho que era a Chaplin Locadora de Itápolis (numa madrugada insone, tive que desistir de Dirigindo no escuro, disponível pelo Prime só na versão dublada).

Mas eu falava de memória e esquecimento; e, talvez por ser um assunto que me é sensível, tergiversei noutras direções/divagações (tive uma sala de alunos que chamava essas digressões de “alvorar”; poético, mas, ainda assim, uma perambulação meio inútil). Esta semana, encasquetei que havia inventado uma citação de Éric Rohmer, uma vez que não lembrava onde a havia lido, nem a encontrava entre meus primeiros palpites de livros e autores. Pior: havia a colocado num roteiro (e, anos atrás, citado num discurso de formatura). Apelei aos outros roteiristas da sala e, um deles, em meu socorro, encontrou — What is filming? It is knowing where put the câmera and how long to leave it there?

Ufa, existe!; Rohmer disse, para além da minha imaginação. A frase ficou no roteiro (happy end); apesar do lapso, a memória não havia brincado de inventar, ainda que toda a memória seja um brincar de reinventar (na impossibilidade de reviver). Volto à crítica (finalmente!), essa escrita que reinventa uma cena interna onde os atores somos eu e o filme, a obra. Escrevo para que me esqueça menos do que vejo, seja entre os filmes que amo ou entre os que quero aprender a amar. Escrevo cada vez menos sobre os filmes que odeio, porque não encontro ânimo e nem tempo a desperdiçar com eles; talvez porque eu não vivo da crítica (aliás, acho que se conta nos dedos quem vive da crítica hoje em dia; digo, sem tem que ter que fazer muitas concessões ou personificar um press kit em reels?)

Repito: tenho feito crítica (se é que a faço!) por puro egoísmo; porque depois de cada universo fílmico, tenho me deparado com o eco do picho no muro — ninguém te tira, você esquece sozinho. Portanto, as críticas, aqui, têm sido um convite a compartilhar o não esquecimento; e se a estatística de leitores está longe de alcançar qualquer “K”, não me parece coisa pessoal; como diz Daney, o que a aldeia global menos precisa é da crítica. Mas teimo nele e em Douchet; além de mumificação (metáfora que usei no último editorial), a crítica aqui continua como carta, mas que volta ao remetente, como uma garrafa que a maré traz de volta. Como a arte de amar aquilo que tenho medo de esquecer de mim mesmo. Egóico? Sim. Mas antes escrever a mim do que a ninguém.

Álvaro André Zeini Cruz

Bauru/SP